Concebida como uma espécie de mapeamento cancional de grande parte de sua produção ao longo de mais de oito anos, a Revoada Sabiazeiro traz 24 composições de Isadora Títto e Renato Torres, distribuídas em 6 voos com 4 canções cada, organizados em temas. Para a difícil e delicada tarefa de erguer arranjos sem ensaio, à distância, a dupla contou com outra dupla de excelência: Cássia Maria, na percussão, e Zazá Amorim, no baixo. Cássia é parceira recente, e de enorme talento e sensibilidade para se colocar num trabalho de fluxo como o do Pé de Pássaro; já Zazá é velho parceiro, quase que uma espécie de padrinho musical do duo, que co-produziu o EP “Voar a Pé”. Essas duas forças sonoras na base rítmica, conjugadas com as vozes e violão de Isadora e Renato são o segredo e a magia dessa façanha virtual em seu contexto sonoro, complementado pelas visões artísticas peculiares dos cineastas Ian Iordanu (SP) e João Urubu (PA).
O primeiro voo traz o tema incontornável dessa parceria singular entre dois artistas brasileiros vivendo a 3.000 km um do outro, e abre com a canção “Longe”, terceira faixa do EP “Voar a Pé”, lançado em 2017. Foi todo realizado em celular, áudio e vídeo, por cada participante, sem qualquer direção de arte por parte dos cineastas Ian Iordanu e João Urubu, a não ser a edição de Ian, e a mixagem/masterização de áudio de Renato Torres. Suas outras três canções, “Dobrado”, “Outono” e “Amar” abordam diferentes perspectivas dessas lonjuras que precisam ser enfrentadas quando envolvem pessoas e coisas que amamos; nessa última, uma pequena amostra do ingrediente poético e cênico do duo, na interpretação de Isadora Títto do poema “Sobre o Amor”, de Renato Torres.
Ainda com vídeos pelo celular, este segundo voo traz uma direção de arte no recorte de cores entre o branco e o amarelo, traduzindo um frescor que sua temática aponta. “Casa Nova”, composição do final de 2019 (anterior, portanto, à pandemia), acabou por referendar esse novo lugar – essa nova casa – onde queremos habitar: um planeta renovado e mais harmonioso, porém, sem esquecer que o processo para se chegar a isso é cheio de dores e de aprendizados profundos, e recompensadores. Editado por João Urubu, com tratamento de áudio de Renato Torres, o voo traz ainda as canções “A Chuva” (parceria do final de 2019 com Ian Iordanu), “Antes da Aurora” (que traz a participação de Paulinho Paes, antigo parceiro da dupla), e “Recanto”, também da safra de 2019.
Reunindo canções metatemáticas, que ampliam e cartografam as múltiplas migrações simbólicas dessa árvore de sons e canções, o terceiro voo é também o primeiro realizado com câmeras DSLR, e áudios captados em estúdio. A direção de arte também cumpre seu papel, trazendo os artistas vestidos de preto, e num tratamento de imagem azulado, revelando as ferramentas do processo criativo no registro fonográfico. Esse voo traz as participações especiais de Alê Bragion em “Além da Asa, e de Luiz Waack em “Para Asas”. “Pé de Pássaro”, canção-tema da parceria composta em 2013, e “Sabiazeiro”, que dá título a este projeto, composta em 2018, completam o repertório.
O quarto voo revela um significado insuspeito da árvore de sabiás: sua maternidade. Este princípio feminino que rege toda a criação artística foi reconhecido pela dupla em várias de suas canções, e em especial nas quatro reunidas nesse voo, que traz a emocionante participação das próprias mães de Isadora e Renato, Ísis Gonçalves e Fernanda Torres, respectivamente, na canção “Confissão”. Ainda na estética das câmeras DSLR, com os artistas vestidos de branco, performando em estúdio, e um tratamento caloroso de âmbar nas imagens, o voo traz ainda “Canção do Círio”, composta para a festa maior da matriarca dos paraenses, a Virgem de Nazaré, “Mãinha”, em homenagem a incrível cantadeira do Vale do Jequitinhonha que ambos conheceram em 2019 em Atibaia, e “Ísis”, canção-ciranda que celebra, através da mãe de Isadora, a força matriz que nos reúne como egrégora planetária em dança circular, com seu canto que evolui até a catarse.
Nesta terceira fase do projeto os voos acontecem em espaços diferentes, e escolhemos para o quinto voo a caixa cênica do teatro. É também aqui que Isadora e Renato vestem suas personas cênicas, suas transmutações e dilatações potencializadas pelo teatro como linguagem. Desse modo, as canções que aqui interpretam são as que trazem uma afirmação política mais contundente – ainda que considerem todo o seu trabalho como uma afirmação poético-política. Novamente filmados em câmeras DSLR, com áudios captados em estúdio, o voo traz as contribuições inestimáveis da luz cênica de Natasha Leite (PA) e Adílson Cunha (SP), com os cineastas Ian e João também dirigindo as cenas. No repertório, canções-estandarte como “Canto e Caminhar” (que traz a participação especial de Alessandro Ferreira), “A Voz do Cantor” (em parceria com Alessandro Ferreira), “Ensaio Sobre a Angústia”, e o tema vocal incendiário “Negríndia”, composto por Isadora, que traz os poemas incidentais “Canto que ama e ondeia” e “Vírus coroado”, de Renato Torres, interpretados por ele mesmo.
O último voo da Revoada Sabiazeiro leva as duas personas cênicas – os eus líricos – até a Natureza, e devolve as energias providas pela árvore-mãe, num fluxo contínuo. “Os Elementais”, canção-roteiro de não-lugares, ou de espacialidades feéricas, nos transporta a diversas paisagens entre a Amazônia e o interior paulista, instando a viagens oníricas; “Ciranda de Estrela”, parceria com Ísis Gonçalves e Alessandro Ferreira, nos guia pela ancestralidade da cantoria folclórica que vai da catira ao boi-bumbá, em festa de cores; “Cantiga Embaraçada” traz a tez de sonho, com a sereia brava de Isadora nos dando conselhos essenciais; e finalmente, “Praia Grande” confirma o poder desta mesma sereia em tragar-nos a todos ao âmago de seu canto de infinitudes. As câmeras DSLR de Ian e João cumprem os trajetos com destreza, e sublimam nossas sedes de sonho com imagens inesquecíveis.